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Inveja

Inveja
Luis Fernando Verissimo

Sou um invejoso, confesso. Invejo quem pode comer doce, quem consegue dormir em avião, quem fala bonito, quem tem neto, quem sabe programar o timer . Invejo os que têm certeza, os que têm fé e os que têm cabelo. Mas há um tipo que eu invejo acima de qualquer outro. Um que me desperta admiração e ódio — que são os componentes da inveja — numa escala quase insuportável. É o que diz, geralmente depois de um suspiro revoltante: “Estou sem nada para ler...”
Entende? Não é a queixa de uma privação passageira. Ele não se distraiu e deixou de se suprir de leituras, como se tivesse esquecido de comprar sabão no super. Está implícita na sua lamúria uma crítica à indústria editorial e à classe intelectual, que simplesmente não produziram nada que merecesse sua atenção. Elas são os responsáveis pelo seu tempo ocioso e a sua mesa de cabeceira vazia. Enquanto eu sofro da angústia oposta, a da falta de tempo e das pilhas de livros na mesa de cabeceira — e nas estantes e em qualquer superfície plana da casa. Minha queixa é outra: coisas demais para ler até a minha morte, marcada para 2076, se é que eu acertei o timer , sem falar no que ainda pretendo comprar. “Que inveja” é o único comentário cabível diante da frase do insensível.
Muitas vezes a frase é apenas preâmbulo para um pedido de sugestão de leitura. Para: “Tens lido algo que preste?” A pergunta pressupõe que você tem os mesmos gostos que ele e lhe dá a oportunidade de brincar de leitor casual também, sem estresse.
— Já leu o da Vinci?
— Já tentei. Mas daquele tamanho...
— E o do Fernando Henrique?
— Acho que vou esperar o filme.
Ele tem razão. Não há mesmo nada para ler.
Mas a inveja de quem não tem a angústia dos livros esperando leitura seria mais honesta, no meu caso, se a falta de tempo não fosse culpa minha. Na verdade, tenho inveja de mim mesmo quando lia por prazer e curiosidade e não perdia tanto tempo com jornais, revistas e televisão, que nos aproximam tanto do mundo que roubam nossa perspectiva, e portanto nos informam e deformam ao mesmo tempo. Enquanto as pilhas não param de aumentar.


Fonte: Jornal O Globo

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