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Zé Carioca

Zé Carioca
Martha Medeiros
Revista O GLOBO – 20 de janeiro 2008 - ELA DISSE

Walt Disney criou o personagem Joe Carioca – que aqui virou José Carioca, vulgo Zé – em 1943, para o filme “Alô, amigos”, que, além de mostrar o personagem circulando pelo Rio de Janeiro, tinha em sua trilha sonora preciosidades como “Aquarela do Brasil” e “Tico-Tico no fubá”. Toda essa bajulação dos estúdios Disney tinha um propósito: conquistar a simpatia do governo brasileiro para que este apoiasse os Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial. Mas aconteceu mais do que isso: o personagem sobreviveu à guerra e ganhou revista própria.
Quem é Zé Carioca? Um sujeito folgado, malandro, golpista, alérgico a trabalho, que passa cheques sem fundo, foge de cobradores e paquera todas as mulheres. Será que era essa a visão que a Disney tinha de nós, habitantes de um longínquo país latino-americano? Consta que na versão original criada pelos gringos, Zé Carioca não era tão gaiato assim. Quem lhe deu essas características, digamos, folclóricas, foram os próprios desenhistas e redatores brasileiros, quando começaram a editá-lo aqui. E acertaram na mosca, porque o personagem passou a ser um dos mais populares do grande elenco que compunha os gibis. Fosse um Zé Certinho, encalharia nas bancas.
Caricatura à parte, quem é, afinal, essa entidade, o carioca? Quem são os Zés, Betos e Suélens Cariocas, que circulam pelas ruas e morros, que trabalham e sambam no pé, que contam piadas e fogem de balas perdidas?
Carioca virou um adjetivo. Ela é carioca, portanto, bonita, sensual, alegre, festiva musa. E ele? É carioca também, mas a condescendência é menor. Há quem diga que eles, os rapazes, são bons de futebol, mas ruins de escritório. Bons de chope, mas ruins de segunda-feira. E assim o resto do país vai mitificando esses boas-vidas, sem deixar de invejá-los, é claro.
Os cariocas vivem num eterno verão. Chinelinho de dedo, bermudinha, vestidinho, qualquer diminutivo os veste. Uma caixa de fósforos se transforma em pandeiro, uma faixa de areia vira passarela. Que é aquela que cruzou a esquina? A Luana!!! O cenário da novela é a cidade, ouve-se música saindo de todos os cantos e há sempre bom teatro em cartaz. De botecos a livraria, nada prescinde de charme. Andar de bicicleta, correr, caminhar: as pernas do Rio são as mais belas porque as mais incansáveis. O sotaque é forrrte, o cristo é insone e os ônibus passam voando: o trânsito é maluco, o.k., mas quem não é maluco?
O que têm eles em comum com o Zé Carioca das revistinhas? A malandragem parece estar mais no suingue do corpo do que na maneira de esgrimir o caráter, e golpista é uma palavra desaforada demais para rotular um povo cujo único “crime” é abominar gravatas. Passadores de cheque sem fundo? Paqueradores natos? Qualquer pessoa com mais de 12 anos sabe que nada é o que parece ser. O carioca pode ser tudo isso e nada disso. Quem vai arriscar resumi-lo?
Adriana Calcanhoto, que é gaúcha, chegou bem perto da essência dessa turma, e fechou a questão na música que compôs para homenagear os habitantes do Rio. Diz a letra: “Cariocas não gostam de sinal fechado.” Se entendermos por fechado tudo o que é rígido, tudo o que impede a passagem, então a frase é perfeita. Abram alas para os cariocas do nosso imaginário e para os cariocas que ultrapassam nossa imaginação, para os Zés dos quadrinhos e para todos os outros que não são enquadráveis, cultivemos esses seres mitológicos que podem até ser irreais, mas que tornam nosso país bem mais adorável.

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