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Em quem confiar

Lya Luft

Em quem confiar

Ando carente de confiança. Andamos, eu acho. Em quem acreditar, em quem confiar, em quem apostar, a quem eleger. por exemplo? Não sei se em outros tempos a gente confiava mais nas pessoas e nas instituições, e detesto saudosismo, mas penso que sim. Porque éramos simplórios? Pode ser. Hoje talvez sejamos mais espertos, criancinhas conhecem mundos, belezas e maldades que a gente só conhecia depois de casado... E olhe lá.

As instituições pareciam sólidas, Judiciário, polícia e política. Lembro-me do chanceler Oswaldo Aranha, que raro jovem hoje saberá quem foi, mas que teve papel importantíssimo no Brasil e no mundo ocidental, amigo de juventude de meu pai, me pegando no colo, em nossa casa, e profetizando, para meu azar: "Você tem olhos lindos, mas precisa se cuidar ou vai ser gordinha". Lembro o aroma de seu charuto, as cores de sua gravata, a voz profunda, o riso bom, e sua naturalidade em nossa casa que estava longe de ser uma mansão.

"Não dá para arrumar tudo. Mas tem de melhorar, para que a gente durma e acorde ao menos com a sensação de que em algumas pessoas e instituições ainda se pode confiar!"

Quando a professora ou professor entrava em sala de aula, a gente se levantava - isso até o fim do 2° grau -, e não faz um século ainda. Hoje batem nas professoras, jogam objetos, falam alto com o colega ou ao celular, se possível, ameaçam ou ridicularizam. Nem todos nem em toda parte, essa ressalva se faça sempre nos meus textos. Mas são coisas que há alguns anos nem passavam pelas nossas fantasias de adolescentes, naturalmente - e necessariamente irreverentes, numa irreverência que hoje deve parecer patetice. A gente era amigo dos filhos do juiz da cidadezinha, e achava o máximo. O pastor de nossa comunidade luterana era recebido em casa com respeito, mesmo que não fôssemos praticantes de religião alguma. Para meu pai, Deus estava em toda parte, na natureza, no outro, em nós mesmos, fator essencial da nossa dignidade, e do sagrado de tudo.

Nossos ídolos eram incrivelmente inocentes em relação a muitos ídolos atuais da meninada. Não acho que a gente curtiria muito alguém supertatuado e furado, e tão drogado que mal consegue se manter em pé, e que requebra para não" cambalear (nem todos, nem sempre). Nossos astros de cinema pareceriam babacas agora, quando, no impulso incoercível de abrir pernas e mostrar tripas (calcinha não têm), a gente troca o público e o privado, e gente famosa, as celebridades, precisa se esconder aterrorizada com a loucura de fãs e paparazzi. Nem no Judiciário a gente confia cegamente, pois a corrupção parece minar tudo no país (fora nem quero saber, bastam-me as mazelas aqui dentro). Andaram sendo demitidos uns poucos ministros, depois de denúncias ainda nem comprovadas, mas tudo parou por aí. Dizem à boca pequena que, se fosse levado a sério e a fundo esse processo todo, restariam pouquíssimos, era caso de botar placas de que o Brasil fora fechado para reformas.

Pais e mães (nem todos, nem sempre) mais parecem adolescentes audazes, ou executivos - ou operários, ou professores, ou médicos, ou seja o que for - exaustos, lutando para manter o essencial na casa, pagar o colégio razoável, ou atender ao deus-consumo, não creio que tenham muito tempo para dar aos filhos carinho, atenção, alegria, autoridade, sem a qual tudo desanda. Fico imaginando quem dará, não só a jovenzinhos e adultos, mas a todos, algum conforto, apoio, exemplo, rumo e prumo: em quem, por exemplo, votar nas próximas eleições, se tantos mudam de partido, se ainda se criam partidos, e se confundem as ideologias - ou elas nem existem mais (ou entendi mal, eu seria apenas uma distraída ficcionista?).

Acho que tudo vai ficando chato e cansativo: esperança de um lado, desgosto de outro, bom modelo aqui, corrupto mandando ali. Não dá para arrumar tudo. Nem rei, nem papa, nem o maior guerreiro do mundo antigo ou do atual mundo virtual, nem o mais hábil dos bruxos divertidos ou sinistros, mudaria a face do país com um golpe de espada ou caneta. Mas que tem de melhorar, ah, isso tem, para que a gente durma e acorde ao menos com a sensação de que, sim, em algumas pessoas, algumas instituições e algumas coisas ainda se pode confiar.

Revista Veja - 10/10/2011

A canção de qualquer mãe

 A canção de qualquer mãe
Lya Luft

"Filhos, vocês terão sempre me dado muito mais do que esperei
ou mereci ou imaginei ter"


Ilustração Atômica Studio
Que nossa vida, meus filhos, tecida de encontros e desencontros, como a de todo mundo, tenha por baixo um rio de águas generosas, um entendimento acima das palavras e um afeto além dos gestos – algo que só pode nascer entre nós. Que quando eu me aproxime, meu filho, você não se encolha nem um milímetro com medo de voltar a ser menino, você que já é um homem. Que quando eu a olhe, minha filha, você não se sinta criticada ou avaliada, mas simplesmente adorada, como desde o primeiro instante.

Que, quando se lembrarem de sua infância, não recordem os dias difíceis (vocês nem sabiam), o trabalho cansativo, a saúde não tão boa, o casamento numa pequena ou grande crise, os nervos à flor da pele – aqueles dias em que, até hoje arrependida, dei um tapa que ainda agora dói em mim, ou disse uma palavra injusta. Lembrem-se dos deliciosos momentos em família, das risadas, das histórias na hora de dormir, do bolo que embatumou, mas que vocês, pequenos, comeram dizendo que estava maravilhoso. Que pensando em sua adolescência não recordem minhas distrações, minhas imperfeições e impropriedades, mas as caminhadas pela praia, o sorvete na esquina, a lição de casa na mesa de jantar, a sensação de aconchego, sentados na sala cada um com sua ocupação.

Que quando precisarem de mim, meus filhos, vocês nunca hesitem em chamar: mãe! Seja para prender um botão de camisa, ficar com uma criança, segurar a mão, tentar fazer baixar a febre, socorrer com qualquer tipo de recurso, ou apenas escutar alguma queixa ou preocupação. Não é preciso constrangerem-se de ser filhos querendo mãe, só porque vocês também já estão grisalhos, ou com filhos crescidos, com suas alegrias e dores, como eu tenho e tive as minhas. Que, independendo da hora e do lugar, a gente se sinta bem pensando no outro. Que essa consciência faça expandir-se a vida e o coração, na certeza de que aquela pessoa, seja onde for, vai saber entender; o que não entender vai absorver; e o que não absorver vai enfeitar e tornar bom.

Que quando nos afastarmos isso seja sem dilaceramento, ainda que com passageira tristeza, porque todos devem seguir seu caminho, mesmo que isso signifique alguma distância: e que todo reencontro seja de grandes abraços e boas risadas. Esse é um tipo de amor que independe de presença e tempo. Que quando estivermos juntos vocês encarem com algum bom humor e muita naturalidade se houver raízes grisalhas no meu cabelo, se eu começar a repetir histórias, e se tantas vezes só de olhar para vocês meus olhos se encherem de lágrimas: serão apenas de alegria porque vocês estão aí. Que quando pareço mais cansada vocês não tenham receio de que eu precise de mais ajuda do que vocês podem me dar: provavelmente não precisarei de mais apoio do que do seu carinho, da sua atenção natural e jamais forçada. E, se precisar de mais que isso, não se culpem se por vezes for difícil, ou trabalhoso ou tedioso, se lhes causar susto ou dor: as coisas são assim. Que, se um dia eu começar a me confundir, esse eventual efeito de um longo tempo de vida não os assuste: tentem entrar no meu novo mundo, sem drama nem culpa, mesmo quando se impacientarem. Toda a transformação do nascimento à morte é um dom da natureza, e uma forma de crescimento.

Que em qualquer momento, meus filhos, sendo eu qualquer mãe, de qualquer raça, credo, idade ou instrução, vocês possam perceber em mim, ainda que numa cintilação breve, a inapagável sensação de quando vocês foram colocados pela primeira vez nos meus braços: misto de susto, plenitude e ternura, maior e mais importante do que todas as glórias da arte e da ciência, mais sério do que as tentativas dos filósofos de explicar os enigmas da existência. A sensação que vinha do seu cheiro, da sua pele, de seu rostinho, e da consciência de que ali havia, a partir de mim e desse amor, uma nova pessoa, com seu destino e sua vida, nesta bela e complicada terra. E assim sendo, meus filhos, vocês terão sempre me dado muito mais do que esperei ou mereci ou imaginei ter.

Revista Veja, Edição 2164

Lya Luft


Ensaio sobre a amizade

Ensaio sobre a amizade

"Nesta página, hoje, sem razão especial
nem data marcada, estou homenageando
aqueles que têm estado comigo seja
como for, para o que der e vier"


Que qualidade primeira a gente deve esperar de alguém com quem pretende um relacionamento? Perguntou-me o jovem jornalista, e lhe respondi: aquelas que se esperaria do melhor amigo. O resto, é claro, seriam os ingredientes da paixão, que vão além da amizade. Mas a base estaria ali: na confiança, na alegria de estar junto, no respeito, na admiração. Na tranqüilidade. Em não poder imaginar a vida sem aquela pessoa. Em algo além de todos os nossos limites e desastres.

Talvez seja um bom critério. Não digo de escolha, pois amor é instinto e intuição, mas uma dessas opções mais profundas, arcaicas, que a gente faz até sem saber, para ser feliz ou para se destruir. Eu não quereria como parceiro de vida quem não pudesse querer como amigo. E amigos fazem parte de meus alicerces emocionais: são um dos ganhos que a passagem do tempo me concedeu. Falo daquela pessoa para quem posso telefonar, não importa onde ela esteja nem a hora do dia ou da madrugada, e dizer: "Estou mal, preciso de você". E ele ou ela estará comigo pegando um carro, um avião, correndo alguns quarteirões a pé, ou simplesmente ficando ao telefone o tempo necessário para que eu me recupere, me reencontre, me reaprume, não me mate, seja lá o que for.

Mais reservada do que expansiva num primeiro momento, mais para tímida, tive sempre muitos conhecidos e poucas, mas reais, amizades de verdade, dessas que formam, com a família, o chão sobre o qual a gente sabe que pode caminhar. Sem elas, eu provavelmente nem estaria aqui. Falo daquelas amizades para as quais eu sou apenas eu, uma pessoa com manias e brincadeiras, eventuais tristezas, erros e acertos, os anos de chumbo e uma generosa parte de ganhos nesta vida. Para eles não sou escritora, muito menos conhecida de público algum: sou gente.

A amizade é um meio-amor, sem algumas das vantagens dele mas sem o ônus do ciúme – o que é, cá entre nós, uma bela vantagem. Ser amigo é rir junto, é dar o ombro para chorar, é poder criticar (com carinho, por favor), é poder apresentar namorado ou namorada, é poder aparecer de chinelo de dedo ou roupão, é poder até brigar e voltar um minuto depois, sem ter de dar explicação nenhuma. Amiga é aquela a quem se pode ligar quando a gente está com febre e não quer sair para pegar as crianças na chuva: a amiga vai, e pega junto com as dela ou até mesmo se nem tem criança naquele colégio.

Amigo é aquele a quem a gente recorre quando se angustia demais, e ele chega confortando, chamando de "minha gatona" mesmo que a gente esteja um trapo. Amigo, amiga, é um dom incrível, isso eu soube desde cedo, e não viveria sem eles. Conheci uma senhora que se vangloriava de não precisar de amigos: "Tenho meu marido e meus filhos, e isso me basta". O marido morreu, os filhos seguiram sua vida, e ela ficou num deserto sem oásis, injuriada como se o destino tivesse lhe pregado uma peça. Mais de uma vez se queixou, e nunca tive coragem de lhe dizer, àquela altura, que a vida é uma construção, também a vida afetiva. E que amigos não nascem do nada como frutos do acaso: são cultivados com... amizade. Sem esforço, sem adubos especiais, sem método nem aflição: crescendo como crescem as árvores e as crianças quando não lhes faltam nem luz nem espaço nem afeto.

Quando em certo período o destino havia aparentemente tirado de baixo de mim todos os tapetes e perdi o prumo, o rumo, o sentido de tudo, foram amigos, amigas, e meus filhos, jovens adultos já revelados amigos, que seguraram as pontas. E eram pontas ásperas aquelas. Agüentei, persisti, e continuei amando a vida, as pessoas e a mim mesma (como meu amado amigo Erico Verissimo, "eu me amo mas não me admiro") o suficiente para não ficar amarga. Pois, além de acreditar no mistério de tudo o que nos acontece, eu tinha aqueles amigos. Com eles, sem grandes conversas nem palavras explícitas, aprendi solidariedade, simplicidade, honestidade, e carinho.

Nesta página, hoje, sem razão especial nem data marcada, estou homenageando aqueles, aquelas, que têm estado comigo seja como for, para o que der e vier, mesmo quando estou cansada, estou burra, estou irritada ou desatinada, pois às vezes eu sou tudo isso, ah!, sim. E o bom mesmo é que na amizade, se verdadeira, a gente não precisa se sacrificar nem compreender nem perdoar nem fazer malabarismos sexuais nem inventar desculpas nem esconder rugas ou tristezas. A gente pode simplesmente ser: que alívio, neste mundo complicado e desanimador, deslumbrante e terrível, fantástico e cansativo. Pois o verdadeiro amigo é confiável e estimulante, engraçado e grave, às vezes irritante; pode se afastar, mas sabemos que retorna; ele nos agüenta e nos chama, nos dá impulso e abrigo, e nos faz ser melhores: como o verdadeiro amor.

Lya Luft é escritora
Imagem: Atômica Studio
veja on-line
Edição 1962,

Quanto nós merecemos?

Quanto nós merecemos?Lya Luft

O ser humano é um animal que deu errado em várias coisas. A maioria das pessoas que conheço, se fizesse uma terapia, ainda que breve, haveria de viver melhor. Os problemas podiam continuar ali, mas elas aprenderiam a lidar com eles.

Sem querer fazer uma interpretação barata ou subir além do chinelo: como qualquer pessoa que tenha lido Freud e companhia, não raro penso nas rasteiras que o inconsciente nos passa e em quanto nos atrapalhamos por achar que merecemos pouco.

Pessoalmente, acho que merecemos muito: nascemos para ser bem mais felizes do que somos, mas nossa cultura, nossa sociedade, nossa família não nos contaram essa história direito. Fomos onerados com contos de ogros sobre culpa, dívida, deveres e… mais culpa.

Um psicanalista me disse um dia:
– Minha profissão ajuda as pessoas a manter a cabeça à tona d’água. Milagres ninguém faz.
Nessa tona das águas da vida, por cima da qual nossa cabeça espia – se não naufragamos de vez –, somos assediados por pensamentos nem sempre muito inteligentes ou positivos sobre nós mesmos.

As armadilhas do inconsciente, que é onde nosso pé derrapa, talvez nos façam vislumbrar nessa fenda obscura um letreiro que diz: “Eu não mereço ser feliz. Quem sou eu para estar bem, ter saúde, ter alguma segurança e alegria? Não mereço uma boa família, afetos razoavelmente seguros, felicidade em meio aos dissabores”. Nada disso. Não nos ensinaram que “Deus faz sofrer a quem ama”?

Portanto, se algo começa a ir muito bem, possivelmente daremos um jeito de que desmorone – a não ser que tenhamos aprendido a nos valorizar.

Vivemos o efeito de muita raiva acumulada, muito mal-entendido nunca explicado, mágoas infantis, obrigações excessivas e imaginárias. Somos ofuscados pelo danoso mito da mãe santa e da esposa imaculada e do homem poderoso, pela miragem dos filhos mais que perfeitos, do patrão infalível e do governo sempre confiável. Sofremos sob o peso de quanto “devemos” a todas essas entidades inventadas, pois, afinal, por trás delas existe apenas gente, tão frágil quanto nós.

Esses fantasmas nos questionam, mãos na cintura, sobrancelhas iradas:
– Ué, você está quase se livrando das drogas, está quase conquistando a pessoa amada, está quase equilibrando sua relação com a família, está quase obtendo sucesso, vive com alguma tranqüilidade financeira… será que você merece? Veja lá!

Ouvindo isso, assustados réus, num ato nada falho tiramos o tapete de nós mesmos e damos um jeito de nos boicotar – coisa que aliás fazemos demais nesta curta vida. Escolhemos a droga em lugar da lucidez e da saúde; nos fechamos para os afetos em lugar de lhes abrir espaço; corremos atarantados em busca de mais dinheiro do que precisaríamos; se vamos bem em uma atividade, ficamos inquietos e queremos trocar; se uma relação floresce, viramos críticos mordazes ou traímos o outro, dando um jeito de podar carinho, confiança ou sensualidade.

Se a gente pudesse mudar um pouco essa perspectiva, e não encarar drogas, bebida em excesso, mentira, egoísmo e isolamento como “proibidos”, mas como uma opção burra e destrutiva, quem sabe poderíamos escolher coisas que nos favorecessem. E não passar uma vida inteira afastando o que poderia nos dar alegria, prazer, conforto ou serenidade.

No conflitado e obscuro território do inconsciente, que o velho sábio Freud nos ensinaria a arejar e iluminar, ainda nos consideramos maus meninos e meninas, crianças malcomportadas que merecem castigo, privação, desperdício de vida. Bom, isso também somos nós: estranho animal que nasceu precisando urgente de conserto.

Alguém sabe o endereço de uma oficina boa, barata, perto de casa – ah, e que não lide com notas frias?

Lya Luft é escritora
Revista Veja, Edição 1935, 14 de dezembro de 2005

Alegres e ignorantes

Alegres e ignorantes

Lya Luft
Revista Veja - Edição 2154. março de 2010

"Estar informado e atento é o melhor jeito de ajudar a construir a sociedade que queremos, ainda que sem ações espetaculares"
Ilustração Atômica Studio
Há fases em que, inquieta, eu talvez aponte mais o lado preocupante da vida. Mas jamais esqueço a importância do bom humor, que na verdade me caracteriza no cotidiano, mais do que a melancolia. Meu amado amigo Erico Verissimo certa vez me disse: "Há momentos em que o humor é até mais importante do que o amor". Eu era muito jovem, na hora não entendi direito, mas a vida me ensinou: nem o amor resiste à eterna insatisfação, à tromba assumida, às reclamações constantes, à insatisfação sem tréguas. Bom humor zero. Desperdício de vida: acredito que, junto com dinheiro, sexo e amor, é a alegria que move o mundo para o lado positivo. Ódio, indignação fácil, rancores e inveja – e nossa natureza predadora – promovem mediocridade e atos cruéis.
Quando, seja na vida pessoal, seja como cidadãos ou habitantes deste planeta, a descrença e o desalento rosnam como animais no escuro no meio do mato, uma faísca de bom humor clareia a paisagem. Mas há coisas que nem todo o bom humor do mundo resolveria num riso forçado. Como senti ao ler, numa dessas pesquisas entre esclarecedoras e assustadoras (quando vêm de fonte confiável), que mais de 30% da nossa chamada elite é de uma desinformação avassaladora. Aqui o termo "elite" não tem a ver com aristocracia, roupa de grife, apartamento em Paris ou décima recostura do rosto, mas com a gente pensante. A que usa a cabeça para algo além de separar orelhas. Pois, segundo a pesquisa, entre nós a imensa maioria dos ditos pensantes não consegue dizer o nome de um só ministro desta nossa República. Senadores, nem falar.
A turma que completa o 2º grau, que faz faculdade, que tem salário razoável, conta no banco, deveria ser a informada. Essa que não precisa comprar carro em noventa meses e deixar de pagar depois de quatro. A elite que consegue viajar conhece até algo do mundo, e poderia ter uma pequena biblioteca em casa. Em geral, não tem. Com sorte, lê jornal, assiste a boas entrevistas e noticiosos daqui e de fora, enfim, é gente do seu tempo. Para isso não se precisa de muita grana, acreditem. Mesmo assim, essa elite é pouco interessada numa realidade que afinal é dela.
Resolvi testar a mim mesma: nomes de ministros atuais desta nossa República. Cheguei a meia dúzia. São quase quarenta. Então começo a bater no peito, em público, aliás. Num país onde mais da metade dos habitantes são analfabetos, pois os que assinam o nome não conseguem ler o que estão assinando, ou vivem como analfabetos, pois não leem nem o jornal largado na praça, os que sabem ler deveriam ser duplamente ativos, informados e participantes. Não somos. Nossos meninos raramente sabem o título de seus livros escolares ou o nome dos professores (sabem o dos jogadores de futebol, dos cantores de bandas, das atrizezinhas semieróticas). Agimos como se nada fora do nosso pequeno círculo pessoal nos atingisse.
Além das desgraças longe e perto, vindas da natureza ou do homem, estamos num ano eleitoral. Inaugurado o circo de manobras, mentiras e traições escrachadas ou subliminares que conhecemos. Precisamos de claridade nas ideias, coragem nos desafios, informação e vontade, e do alimento dos afetos bons. Num livro interessante (não importa o assunto) alguém verbaliza velhas coisas que a gente só adivinhava; um filme pode nos lembrar a generosidade humana; uma conversa pode nos tirar escamas dos olhos. Estar informado e atento é o melhor jeito de ajudar a construir a sociedade que queremos, ainda que sem ações espetaculares. Mas, se somos desinformados, somos vulneráveis; se continuarmos alienados, bancaremos os tolos; sendo fúteis, cavamos a própria cova; alegremente ignorantes, podemos estar assinando nossa sentença de atraso, vestindo a mordaça, assumindo a camisa de força que, informados, não aceitaríamos.

Alegria, espírito aberto, curiosidade, coisas boas desta vida, todos as merecemos. Mas me poupem do risinho tolo da burrice ou da desinformação: o vazio por trás dele não promete nada de bom.

Trabalhar e sofrer

Trabalhar e sofrer
Lya Luft

"O trabalho enobrece" é uma dessas frases feitas que a gente repete sem refletir no que significam, feito reza automatizada. Outra é "A quem Deus ama, ele faz sofrer", que fala de uma divindade cruel, fria, que não mereceria uma vela acesa sequer. Sinto muito: nem sempre trabalhar nos torna mais nobres, nem sempre a dor nos deixa mais justos, mais generosos. O tempo para contemplação da arte e da natureza, ou curtição dos afetos, por exemplo, deve enobrecer bem mais. Ser feliz, viver com alguma harmonia, há de nos tornar melhores do que a desgraça. A ilusão de que o trabalho e o sofrimento nos aperfeiçoam é uma ideia que deve ser reavaliada e certamente desmascarada.
O trabalho tem de ser o primeiro dos nossos valores, nos ensinaram, colocando à nossa frente cartazes pintados que impedem que a gente enxergue além disso. Eu prefiro a velha dama esquecida num canto feito uma mala furada, que se chama ética. Palavra refinada para dizer o que está ao alcance de qualquer um de nós: decência.
"Assim como o sofrimento pode nos tornar amargos e até emocionalmente estéreis, o trabalho pode aviltar, humilhar, explorar e solapar qualquer dignidade"
Prefiro, ao mito do trabalho como única salvação, e da dor como cursinho de aperfeiçoamento pessoal, a realidade possível dos amores e dos valores que nos tornariam mais humanos. Para que se trabalhe com mais força e ímpeto e se viva com mais esperança.
O trabalho que dá valor ao ser humano e algum sentido à vida pode, por outro lado, deformar e destruir. O desprezo pela alegria e pelo lazer espalha-se entre muitos de nossos conceitos, e nos sentimos culpados se não estamos em atividade, na cultura do corre-corre e da competência pela competência, do poder pelo poder, por mais tolo que ele seja.
Assim como o sofrimento pode nos tornar amargos e até emocionalmente estéreis, o trabalho pode aviltar, humilhar, explorar e solapar qualquer dignidade, roubar nosso tempo, saúde e possibilidade de crescimento. Na verdade, o que enobrece é a responsabilidade que os deveres, incluindo os de trabalho, trazem consigo. O que nos pode tornar mais bondosos e tolerantes, eventualmente, nasce do sofrimento suportado com dignidade, quem sabe com estoicismo. Mas um ser humano decente é resultado de muito mais que isso: de genética, da família, da sociedade em que está inserido, da sorte ou do azar, e de escolhas pessoais (essas a gente costuma esquecer: queixar-se é tão mais fácil).
Quanto tempo o meu trabalho – se é que temos escolha, pois a maioria de nós dá graças a Deus se consegue trabalhar por um salário vil – me permite para lazer, ou o que eu de verdade quero, se é que paro para refletir sobre isso? Quanto tempo eu me dou para viver? Quanto sobra para meu crescimento pessoal, para tentar observar o mundo e descobrir meu lugar nele, por menor que seja, ou para entender minha cultura e minha gente, para amar minha família?
E, se o luxo desse tempo existe, eu o emprego para ser, para viver, ou para correr atrás de mais um trabalho a fim de pagar dívidas nem sempre necessárias? Ou apenas não me sinto bem ficando sem atividade, tenho de me agitar sem vontade, rir sem alegria, gritar sem entusiasmo, correr na esteira além do indispensável para me manter sadio, vagar pe-los shoppings quando nada tenho a fazer ali e já comprei todo o possível – muito mais do que preciso, no maior número de prestações que me ofereceram? E, quando tenho momentos de alegria, curto isso ou me preocupo: algo deve estar errado?
Servos de uma culpa generalizada, fabricamos caprichosamente cada elo do círculo infernal da nossa infelicidade e alienação. Essas frases feitas, das quais aqui citei só duas, podem parecer banais. Até rimos delas, quando alguém nos leva a refletir a respeito. Mas na verdade são instrumento de dominação de mentes: sofra e não se queixe, não se poupe, não se dê folga, mate-se trabalhando, seja humilde, seja pobre, sofrer é nosso destino, darás à luz com dor – e todo o resto da tola e desumana lavagem cerebral de muitos séculos, que a gente em geral nem questiona mais.
Ilustração Atômica Studio
Publicado na Revista Veja, Editora Abril
Edição 2148, ano 43 - nº 3, 20/01/2010

Respeito é bom

Lya LuftRespeito é bom


"Sendo humanos, homens, mulheres e crianças, somos ainda animais predadores, querendo ocupar espaço a patadas. A gente precisa ser domesticado desde o dia em que nasce"


Respeito é bom e eu gosto", diz uma das mil frases feitas - esse sutil veneno ou pontapé no estômago - que pontilham nossa sabedoria dita popular. Vale para muitos aspectos da nossa vida. Vamos ver alguns.
Escuto frequentemente a queixa de mulheres de que ainda não são respeitadas como merecem, em seu trabalho ou individualmente. Primeiro, é uma questão de tempo, pois em quase todos os territórios da atividade humana, menos cozinhar e parir, mulheres são novidade. Ainda estamos buscando nosso jeito de trabalhar, de comandar, de usar nossa autonomia.
Certa vez, querendo me elogiar, um crítico escreveu: "(...) é uma excelente escritora, pois, embora sendo mulher, escreve com mão de homem". Isso por si basta para reconhecer a carga de preconceito que sobrevive mesmo entre pessoas com certo preparo, inclusive mulheres, diga-se de passagem, que em geral são os piores juízes de outras mulheres. Se ela faz bem um trabalho (vale para juízas, reitoras, governadoras, vereadoras, motoristas de ônibus, policiais, grandes cirurgiãs etc.), é porque o faz como homem. Quantas gerações terão de passar, para que isso mude?
Esse preconceito é demorado e obstinado, e nós mulheres colaboramos com ele dando nossa melancólica parcela, por exemplo, no jeito como nos portamos, como nos vestimos, como agimos no trivial, ou quando estamos no poder, qualquer poder. Não é por nada que boa parte das propagandas de quaisquer produtos usa mulheres quase nuas ou em trejeitos sensuais: vende, dá ibope, dá vontade de comprar... o que é um modo de poder. Falo com certa frequência na psicóloga que atende seus pacientes de minissaia ou profundos decotes, e digo que, lidando com a alma desses pacientes, a roupa não parece muito adequada. Nada contra a peça de roupa, desde que num corpo adolescente: adolescentes ainda não atendem pessoas com problemas psicológicos.
Enquanto nos portarmos feito crianças pouco inteligentes, ou enquanto nosso maior trunfo forem nádegas firmes, fica difícil reclamar que não nos respeitam o bastante. Estarei dando muito valor a exterioridades como saia, joias, trejeitos? Estou. A aparência é nosso primeiro cartão de visita, dizendo coisas como: eu me acho linda, eu sou sensual, estou consciente disso. O segundo cartão é a linguagem: se eu não sei nem articular direito meu pensamento falando ou escrevendo, não vou ser um grande candidato a um emprego razoável, pelo menos um cargo em que eu precise pensar... e falar.
Pais também se queixam de que os filhos não os respeitam. Um bom começo de diálogo é indagar como eles, pais, se portam em casa. Gentis um com o outro, com empregadas, com os filhos - ou a gente acha que dentro da porta de casa, com filhos, vale tudo, até grosseria e falta de compostura? O comportamento das crianças e adolescentes e seus conceitos sobre o mundo (eles os têm desde cedo, não se iludam!) refletem sua casa. Um pouco incômodo: querendo ou não, somos seus primeiros modelos, e eles percebem muito bem o que é natural e o que é fingido em nós.
Isso se estende para a escola, onde professores suportam violência verbal e física, agressividade, má-educação, hostilidade por parte de alguns alunos - não todos, possivelmente nem a maioria. Se pudéssemos pesquisar a vida familiar dessa meninada, com frequência iríamos constatar que ela apenas reproduz ou continua, na rua, no pátio da escola e na sala de aula, o tratamento que predomina em sua casa. Lá, talvez, os filhos não conheçam limites ou, quem sabe, o pai é do tipo que aprecia um coronelismo ultrapassado.
Observo muita gente, e não só jovens, dando de ombros ou rindo ao assistir a uma entrevista de alguns dos nossos líderes (ou escutando belas frases sobre ética): também na vida pública, o respeito tem de ser conquistado e merecido. Sendo humanos, homens, mulheres e crianças, somos ainda animais predadores, querendo ocupar espaço a patadas. Se pudermos, em vez de falar, rosnamos; em lugar de curtir, cuspimos em cima. A gente precisa ser domesticado desde o dia em que nasce.

Lya Luft é escritora

Texto publicado na Revista VEJA
Edição 2139 / 18 de novembro de 2009
Seção Lya Luft

Faxina nos mitos

Faxina nos mitos


"Boa parte de nossa infelicidade nasce do fato de vivermos rodeados por mitos.Deixamos que aflorem e construímos emcima deles a nossa desgraça"

Boa parte de nossa infelicidade ou aflição nasce do fato de vivermos rodeados (por vezes esmagados ou algemados) por mitos. Nem falo dos belos, grandiosos ou enigmáticos mitos da Antiguidade grega. Falo, sim, dos mitinhos bobos que inventou nosso inconsciente medroso, sempre beirando precipícios com olhos míopes e passo temeroso. Inventam-se os mitos, ou deixamos que aflorem, e construímos em cima deles a nossa desgraça.
Por exemplo, o mito da mãe-mártir. Primeiro engano: nem toda mulher nasce para ser mãe, e nem toda mãe é mártir. Muitas são algozes, aliás. Cuidado com a mãe sacrificial, a grande vítima, aquela que desnecessariamente deixa de comer ou come restos dos pratos dos filhos, ou, ainda, que acorda às 2 da manhã para fritar (cheia de rancor) um bife para o filho marmanjo que chega em casa vindo da farra. Cuidado com a mãe atarefada que nunca pára, sempre arrumando, dobrando roupas, escarafunchando armários e bolsos alheios sob o pretexto de limpar, a mãe que controla e persegue como se fosse cuidar, não importa a idade das crias. Essa mãe certamente há de cobrar com gestos, palavras, suspiros ou silêncios cada migalhinha de gentileza. Eu, que me sacrifiquei por você, agora sou abandonada, relegada, esquecida? E por aí vai...
Ou o mito do bom velhinho: nem todo velho é bom só por ser velho. Ao contrário, se não acumularmos bom humor, autocrítica, certa generosidade e cultivo de afetos vários, seremos velhos rabugentos que afastam família e amigos. Nem sempre o velho ou velha estão isolados porque os filhos não prestam ou a vida foi injusta. Muitas vezes se tornam tão ressequidos de alma, tão ralos de emoções, tão pobres de generosidade e alegria que espalham ao seu redor uma atmosfera gélida, a espantar os outros.
E o mito do homem fortão, obrigado a ser poderoso, competente, eterno provedor, quando esconde como todos nós um coração carente, uma solidão fria, a necessidade de companhia, de colo e de abraço – quando é, enfim, apenas um pobre mortal.
Falemos ainda no mito da esposa perfeita, aquela da qual alguns homens, enquanto pulam valentemente a cerca, dizem: "Minha mulher é uma santa". Sinto muito, mas nem todas são. Eu até diria que, mais vezes do que sonhamos, somos umas chatas. Sempre reclamando, cobrando, controlando, não querendo intimidades, ocupadas em limpar, cozinhar, comandar, irritar, na crença vã de que boa mulher é a que mantém a casa limpa e a roupa passada. Seria bem mais humano ter braços abertos, coração cálido, compreensão, interesse e ternura.
O mito de que a juventude é a glória demora a ruir, mas deveria. Pois jovem se deprime, se mata, adoece, sofre de perdas, angustia-se com o mercado de trabalho, as exigências familiares, a pressão social, as incertezas da própria idade. A juventude – esquecemos isso tantas vezes – é transformação por vezes difícil, com horizontes nublados e paulatina queda de ilusões. É fragilidade diante de modelos impossíveis que nos são apresentados clara ou subliminarmente o tempo todo.
Enfim, a lista seria longa, mas, se a gente começar a desmitificar algumas dessas imagens internalizadas, começaremos a ser mais sensatamente felizes. Ou, dizendo melhor: capazes de alegria com aquilo que temos e com o que podemos fazer numa vida produtiva, porque real.

Lya Luft é escritora

VEJA - Edição 1901 . 20 de abril de 2005
Ilustracao Atômica Studio

No paraíso da transgressão

No paraíso da transgressão
Lya Luft


"Vivemos feito bandos de ratos aflitos, recorrendo à droga, à bebida, ao delírio, à alienação e à indiferença, para aguentar uma realidade cada dia mais confusa"


A gente se acostuma a criticar os jovens por eles serem pouco educados, os homens por serem arrogantes, as mulheres por serem chatas, os governos por serem omissos ou incompetentes, quando não mal-intencionados. Políticos sendo acusados de corrupção é tão trivial que as exceções se vão tornando ícones, ralas esperanças nossas. Onde estão os homens honrados, os cidadãos ilustres e respeitados, que buscam o bem da pátria e do povo, independentemente de cargos, poder e vantagens?
Transgredir no mau sentido é natural entre nós. Ladrões e assassinos, mesmo estupradores, recebem penas ridículas ou aguardam o julgamento em liberdade; se condenados, conseguem indultos absurdos ou saem em ocasiões como o Natal, e boa parte deles naturalmente não volta. Crianças continuarão a ser estupradas, inocentes mortos, velhinhos roubados, mulheres trancadas em suas casas, porque a justiça é cega, porque as leis são insensatas e, quando prestam, raramente se cumprem.
Nesta nossa terra, muitos cidadãos destacados, líderes, são conhecidos como canalhas e desonestos, mas, ainda que réus confessos ou comprovados, inevitavelmente se safam. Continuam recebendo polpudos dinheiros. Depois de algum tempo na sombra, feito eminências pardas, voltam a ocupar importantes cargos de onde nos comandam. Assassinos ao volante nem são presos. Se presos, são soltos para o famoso "aguardar o julgamento em liberdade". Centenas e centenas de vidas cortadas de maneira brutal e o assassino, a não ser que acossado pela culpa moral, se tiver moral, logo voltará ao seu dia-a-dia, numa boa. Se invadir a casa de meu vizinho, fizer seus empregados de reféns, der pauladas na sua mulher ou na sua velha mãe e escrever nas paredes com excremento humano frases ameaçadoras, imagino que eu vá para a cadeia. Os bandos de pseudoagricultores (a maioria não sabe lidar na terra) fazem tudo isso e muito mais, e nada lhes acontece: no seu caso, bizarramente, não se aplica a lei.
Se sobram muitas vagas nos exames vestibulares, em alguns casos simplesmente se fazem novas provas, provinhas mais fáceis. Leio (se me engano já me desculpo, nem tudo o que se lê é verdadeiro) que, como são poucos os aprovados nos exames da OAB, porque os estudantes saem despreparados demais das faculdades de direito que pululam pelo país, o exame se tornou mais simples: há que aprovar mais gente. Quantidade, não qualidade. Governantes, os bons e esforçados, viram objeto de ódio de adversários cujo interesse não é o bem da comunidade, estado ou país, mas o insulto, o desrespeito, a violência moral do pior nível. Aliás, nesses casos o nível não importa, o que importa é destruir.
Eis o paraíso dos transgressores: a lei é a da selva, a honradez foi para o brejo, a decência tem de ser procurada como fez há séculos um filósofo grego: ao lhe indagarem por que andava pela cidade com uma lanterna acesa em dia claro, declarou: "Procuro um homem honesto". O que devemos dizer nós? Temos pouca liderança positiva, raríssimo abrigo e norte, referências pífias, pobre conforto e estímulo zero, quase nenhuma orientação. A juventude é quem mais sofre, pois não sabe em que direção olhar, em que empreitadas empregar sua força e sua esperança, em quem acreditar nesse tumulto de idéias desencontradas. Vivemos feito bandos de ratos aflitos, recorrendo à droga, à bebida, ao delírio, à alienação e à indiferença, para aguentar uma realidade cada dia mais confusa: de um lado, os sensatos recomendando prudência e cautela; de outro, os irresponsáveis garantindo que não há nada de mais com a gigantesca crise atual, que não tem raízes financeiras, mas morais: a ganância, a mentira, a roubalheira, a omissão e a falta de vergonha. E a tudo isso, abafando nossa indignação, prestamos a homenagem do nosso desinteresse e fazemos a continência da nossa resignação. Meus pêsames, senhores. Espero que na hora de fechar a porta haja um homem honrado, para que se apague a luz de verdade, não com grandes palavras e reles mentiras.


Lya Luft é escritora

VEJA - Edição 2103 - 11 de março de 2009
Ilustração Atômica Studio

Por que se calam

Por que se calam




"Quando a linguagem é simples ou até supérflua, porque o sentimento é real, podemos escutar a alma do outro na sua respiração"


A dificuldade de comunicação nos relacionamentos me fascina. A palavra não dita quando deveríamos ter falado, a palavra negada quando falar teria sido importante. O drama está em que, nos dois casos, a gente não sabia. Se adivinhava, não conseguiu agir. Os amantes a que me refiro – também num livro sobre o tema, que acaba de sair – não são apenas o casal amoroso, mas quaisquer pessoas ligadas (ou supostamente ligadas) por afeto. Isso inclui a família, meu tema recorrente: lá nem sempre reinam o afeto e o respeito.


Alguém pode cobrar: "Aquela vez, naquele lugar, você me disse isso, e até hoje me dói". A gente pensa, repensa, mas não se lembra: "O que foi, quando foi? Eu jamais teria dito isso, sobretudo se ia te ferir". Mas o outro insiste na sua dor. A incomunicabilidade é quase um estado habitual de muitas pessoas: como nascer com algum defeito físico do qual não se tem culpa, mas que chateia ou atormenta. Saber se comunicar, no trabalho, no cotidiano e na vida pessoal, é uma dádiva. Abre portas e janelas, promove generosidade e acolhimento. Mas é raro. Em geral somos enrolados, somos tímidos, guardamos velhas mágoas ou somos arrogantes, outra face da insegurança e do medo.


Trágicos desencontros podem nascer de situações aparentemente simples: pessoas comuns em sua vida sem graça, durante anos e anos de convívio sem grande conflito, pensam estar tudo bem. Então, sem nenhum sinal, uma palavra sequer, irrompe a violência, que pode ser física, ou moral, como uma traição. Uma insatisfação que já não se deixa controlar. O ressentimento explode como um vulcão de lama. Ou alguém comete a mais traiçoeira e punitiva das ações: mata-se um marido, uma mãe, um filho adolescente. Para o sempre do sempre, o peso da culpa permanece sobre os demais. Em que momento ele quis pedir ajuda e não percebi? Quando ela pensou em se abrir comigo, mas eu estava com pressa? Ontem, ainda, ele jogava bola comigo, e hoje vem a notícia de que se enforcou: o que eu poderia ter feito? A resposta pode ser um silêncio maligno que não vai se calar nunca mais.


Mas existe também o silêncio bom, que, em lugar de erguer muros, abre espaços. É a não-necessidade de falar, entre pessoas seguras do seu carinho mútuo. Elas ficam perfeitamente felizes sentadas juntas, cada uma lendo seu livro, seu jornal, fazendo seu trabalho. De vez em quando uma palavra, um gesto de afeto, e ao redor delas abre-se um círculo de harmonia. Na vida nem tudo é sofrimento, esterilidade e solidão. A dor faz parte, mas há momentos de magia para todos. Da pessoa mais simples ao mais refinado intelectual, qualquer um pode descobri-los, ou persegui-los, quando a correria, os compromissos, as pressões lhe derem um pouco de paz. Ou ela terá de ser conquistada usando-se garras, dentes, cotovelos.
Quando a linguagem é simples ou até supérflua, porque o sentimento é real e assim entendido, podemos escutar a alma do outro na sua respiração. Todo ruído, toda agitação, e até mesmo a fala, serão secundários. Os amantes não vão se calar por mágoa ou impotência, mas por que algo os expressa melhor do que as mais contundentes palavras.

Lya Luft é escritora
Revista VEJA * Edição 2060 * Ponto de vista: Lya Luft

A alma do outro

A alma do outro

"No relacionamento amoroso, familiar ou amigo acredito que partilhar a vida com alguém que valha a pena é enriquecê-la. Permanecer numa relação desgastada é suicídio emocional, é desperdício de vida""A alma do outro é uma floresta escura", disse o poeta Rainer Maria Rilke, meu único autor de cabeceira.
A vida vai nos ensinando quanto isso é verdade. Pais e filhos, irmãos, amigos e amantes podem conviver décadas a fio, podem ter uma relação intensa, podem se divertir juntos e sofrer juntos, ter gostos parecidos ou complementares, ser interessantes uns para os outros, superar grandes conflitos – mas persiste o lado avesso, o atrás da máscara, que nunca se expõe nem se dissipa.
Nem todos os mal-entendidos, mágoas e brigas se dão porque somos maus, mas por problemas de comunicação. Porque até a morte nos conheceremos pouco, porque não sabemos como agir. Se nem sei direito quem sou, como conhecer melhor o outro, meu pai, meu filho, meu parceiro, meu amigo – e como agir direito?
Neste momento escrevo, como já disse, um livro sobre o silêncio. Começou como um ensaio na linha de O Rio do Meio e Perdas & Ganhos, mas acabou se tornando um romance, em pleno processo de elaboração. Isso me faz refletir mais agudamente sobre a questão da comunicação e sua por vezes dramática dificuldade, pois nos mal-entendidos reside muito sofrimento desnecessário.
Amor e amizade transitam entre esses dois "eus" que se relacionam em harmonia e conflito: afeto, generosidade, atenção, cuidados, desejo de partilhamento ou de vida em comum, vontade de fazer e ser um bem, e de obter do outro o que para a gente é um bem, o complicado respeito ao espaço do outro, formam um campo de batalha e uma ponte. Pontes podem ser precárias, estradas têm buracos, caminhos escondem armadilhas inconscientes que preparamos para nossos próprios passos em direção do outro. O que está mergulhado no inconsciente é nosso maior tesouro e o mais insidioso perigo.
Pensar sobre a incomunicabilidade ou esse espaço dela em todos os relacionamentos significa pensar no silêncio: a palavra que devia ter sido pronunciada, mas ficou fechada na garganta e era hora de falar; o silêncio que não foi erguido no momento exato – e era o momento de calar.
Mas, como escrevi várias vezes, a gente não sabia. É a incomunicabilidade, não por maldade ou jogo de poder, mas por alienação ou simples impossibilidade. Anos depois poderá vir a cobrança: por que naquela hora você não disse isso? Ou: por que naquele momento você disse aquilo?
Relacionar-se é uma aventura, fonte de alegria e risco de desgosto. Na relação defrontam-se personalidades, dialogam neuroses, esgrimem sonhos e reina o desejo de manipular disfarçado de delicadeza, necessidade ou até carinho. Difícil? Difícil sem dúvida, mas sem essa viagem emocional a existência é um deserto sem miragens.
No relacionamento amoroso, familiar ou amigo acredito que partilhar a vida com alguém que valha a pena é enriquecê-la; permanecer numa relação desgastada é suicídio emocional, é desperdício de vida. Entre fixar e romper, o conflito e o medo do erro.
Somos todos pobres humanos, somos todos frágeis e aflitos, todos precisamos amar e ser amados, mas às vezes laços inconscientes enredam nossos passos e fecham nosso coração. A balança tem de ser acionada: prevalecem conflitos ásperos e a hostilidade, ou a ternura e aqueles conflitos que ajudam a crescer e amar melhor, a se conhecer melhor e melhor enxergar o outro? O olhar precisa ser atento: mais coisas negativas ou mais gestos positivos? Mais alegria ou mais sofrimento? Mais esperança ou mais resignação?
Cabe a cada um de nós decidir, e isso exige auto-exame, avaliação. Posso dizer que sempre vale a pena, sobretudo vale a pena apostar quando ainda existe afeto e interesse, quando o outro continua sendo um desafio em lugar de um tédio, e quando, entre pais e filhos, irmãos, amigos ou amantes, continua a disposição de descobrir mais e melhor quem é esse outro, o que deseja, de que precisa, o que pode – o que lhe é possível fazer.
Em certas fases, é preciso matar a cada dia um leão; em outras, estamos num oásis. Não há receitas a não ser abertura, sinceridade, humildade que não é rebaixamento. Além do amor, naturalmente, mas esse às vezes é um luxo, como a alegria, que poucos se permitem.
Seja como for, com alguma sorte e boa vontade a alma do outro pode também ser a doce fonte da vida.

Lya Luft é escritoraVEJA Edição 2005, 25 de abril de 2007
Ponto de vista: Lya Luft

Falta de educação e velocidade

Ponto de vista: Lya Luft
Falta de educação e velocidade


"Os motoristas americanos e europeus impressionampela educação. Não por serem bonzinhos ou melhoresdo que nós, mas porque temem a lei"


Os anjos da morte estão cansados de nos recolher, a nós que nos matamos ou somos assassinados no tráfego das estradas, cidades, esquinas deste país. Os anjos da morte estão exaustos de pegar restos de vidas botadas fora. Os anjos da morte andam fartos de corpos mutilados e almas atônitas. Os anjos da morte suspiram por todo esse desperdício.
Não sei se as propagandas que tentam aos poucos aliviar essa tragédia ajudam tanto a preservar vidas quanto as intermináveis, ricas e coloridas propagandas de cerveja ajudam a beber mais e mais e mais, colaborando para uma parte dessa carnificina. Mas sei que estou no limite. Não apenas porque abro jornais, TV e computador e vejo a mortandade em andamento, mas porque tenho observado as coisas em questão. Recentemente, dirigindo numa auto-estrada, percebi um motorista tentando empurrar para o canteiro central um carro que seguia à minha frente na faixa esquerda, na velocidade adequada ao trajeto. Chegava provocadoramente perto, pertinho, pertíssimo, quase batia no outro, que se desviava um pouco lutando para manter-se firme no seu trajeto sem despencar.
Logo adiante, pára tudo, um acidente grave. O motorista do carro assediado, um senhor de cabelos brancos, desce, vai até o carro do imbecil agora parado à sua frente, fala, gesticula, numa justa ira. Depois volta ao carro, em que a família o espera. Recomeça o tráfego, perco os dois de vista. Mas fica em minha memória um motorista boçal tentando fazer um inocente perder o controle do carro. Era inconseqüente por natureza, era um agressivo perigoso, ou estaria simplesmente alcoolizado às 8 da manhã?
Outro dia observei na televisão um motorista, apanhado a quase 200 por hora, sendo entrevistado ainda dentro do carro. Fiquei impressionada com seu sorriso idiota, o arzinho arrogante, o jeito desafiador com que encarou a câmera num silêncio ofendido, quando perguntado sobre as razões da sua insanidade. Todo o seu ar era de quem estava coberto de razão: a lei e a segurança dos outros e a dele próprio nada valiam diante da sua onipotência.
Atenção: os jovens são – em geral, mas não sempre – mais arrojados, mais imprudentes, têm menos experiência na direção. Portanto, são mais inclinados a acidentes, bobos ou fatais, em que a gente mata e morre. Mas há um número impressionante de adultos – mais homens do que mulheres, diga-se de passagem, porque talvez sejam biologicamente mais agressivos – cometendo loucuras ao dirigir, avançando o sinal, quase empurrando o veículo da frente com seu pára-choque, não cedendo passagem, ultrapassando em locais absurdos sem a menor segurança, bebendo antes de dirigir, enfim, usando o carro como um punhal hostil ou um falo frustrado.
Cada um se porta como quer – ou como consegue. Isso vem do caráter inato, combinado com a educação recebida em casa. Quando esse comportamento ultrapassa o convívio cotidiano e pode mutilar pais de família, filhos e filhas amados, amigos preciosos, ou seja lá quem for, então é preciso instaurar leis férreas e punições comparáveis. Que não permitam escapadelas nem facilitem cometer a infração com branda cobrança. Que não admitam desculpas e subterfúgios, não premiem o erro, não pequem por uma criminosa omissão.
Precisamos em quase tudo de autoridade e respeito, para que haja uma reforma generalizada, passando da desordem e do caos a algum tipo de segurança e bem-estar. Os motoristas americanos e europeus impressionam pela educação. Não por serem bonzinhos ou melhores do que nós, mas porque temem a lei, a punição, a cassação da carteira, a prisão, por coisas que aqui entre nós são consideradas apenas "normais", meros detalhes, "todo mundo faz assim".
Autoridade justa, mas muito rigorosa, é o que talvez nos deixe mais lúcidos e mais bem-educados: em casa, na escola, na rua, na estrada, no bar, no clube, dentro do nosso carro. E os fatigados anjos da morte poderão, se não entrar em férias, ao menos relaxar um pouco.


Lya Luft é escritora


VEJA Edição 2048 20 de fevereiro de 2008

Um Natal para reflexão

Um Natal para reflexão
Texto publicado na Revista Veja - Ponto de vista: Lya Luft.
Edição 1988. 27 de dezembro de 2006.

"No reduto de nossa casa, dos abraços sinceros, das memórias comovidas, dos bons projetos e do derradeiro otimismo, este é um Natal para repensar muita coisa”.

Há dois Natais em cada um de nós: o que sonha e o que sofre, o que concilia e o que corrói, o que se aflige e o que celebra, o que descrê e o que espera, o que cobre a cabeça para não ver e o que fala alto, claro e com fervor. Por acaso – eu, que pouco acredito em acasos – esta coluna vai sair na véspera da véspera de Natal: tema espinhoso, pois há os que cultuam, os que detestam, os que ignoram, os que ficam melancólicos, e todos precisam ser respeitados, todos no mesmo barco da alegria ou do susto, e da geral perplexidade sobre o que fazer, como fazer, quando começar a fazer. Fazer o quê? Refletir, mudar, gritar, amar, comprar ou vender, esperar, talvez morrer. Escrever, no meu caso. Sobre mim, sobre o mundo, sobre este estranho país de contrastes, de desencontros e desencantos, de rala e rara esperança.

Não aprecio a torre de marfim da estética e da emoção, em que se pretende que a realidade não nos diga respeito: diz respeito, sim, pois acredito que cada cidadão é senhor, é mestre em assuntos de seu país. Tem o doutorado da dura experiência, das contas a pagar, do emprego a conseguir, dos líderes cínicos e decepcionantes, dos filhos a criar, da saúde a desejar, da esperança a manter, apesar de tudo. No território da realidade concreta, aparentemente nossa resignação precisa começar a criar seus limites: bom presente de Natal para cada pessoa que pensa. Bradar em vez de sussurrar; olhar de frente em lugar de se esconder.

Andamos demais acomodados, todo mundo reclamando em voz baixa como se fosse errado indignar-se. Sem ufanismo, que dele estou cansada, sem dizer que este é um país rico, de gente boa e cordata, com natureza (a que sobrou) belíssima e generosa – sem fantasiar nem botar óculos cor-de-rosa que o momento não permite, eu me pergunto o que anda acontecendo com a gente. Tenho medo disso que nos tornamos ou em que estamos nos transformando, achando bonita a ignorância eloqüente, engraçado o cinismo bem-vestido, interessante o banditismo arrojado, normal o abismo em cuja beira nos equilibramos – não malabaristas, mas palhaços.

Saúde, educação, cultura, estradas, ferrovias, aviação estão numa decadência nunca vista, sem falar na honradez de nossos homens públicos. Líderes mentem e se desmentem, acobertam-se, insultam-se, à vista de todos se comprometem com a corrupção e os mais variados escândalos! Tudo normal, como o império macabro da violência que nos faz correr nas ruas feito ratos amedrontados, fechados em casa à noite devido à guerra civil, felizes se nenhuma das pessoas que amamos foi assaltada e morta naquele dia.

Dormimos no chão dos aeroportos, contentes quando nosso avião afinal chega salvo ao seu destino, enquanto se fazem mais cortes nesse setor e em muitos outros, para poder pagar o fantástico salário de deputados e senadores: as coisas por aqui são assim mesmo, por que se incomodar?

Tudo isso, e muito mais, acontecer com tamanha naturalidade é péssimo sinal. Mas como nem tudo são horrores, também existem os amigos que não nos decepcionam, os amores que nos fundamentam, os batalhadores e os idealistas, os conciliadores que nos fazem acreditar em harmonia mais do que em desagregação e rancor, no futuro mais do que no duvidoso presente. Houve no público e no pessoal realizações e até decência, e é bom lembrar disso para que a gente recupere a vergonha, abra braços mais generosos, endireite a espinha da dignidade e adoce a voz de todos os amores.

Para os que acreditam e os que apenas gostariam de acreditar em alguma religião, em algumas pessoas, em alguma nobreza, em alguma esperança, em si mesmos ou em sua família, este é um momento de parar, pensar, escutar e enxergar dentro e além dos limites pessoais e dos fatos com os quais corremos o perigo de nos resignar. No reduto de nossa casa, dos abraços sinceros, das memórias comovidas, dos bons projetos e do derradeiro otimismo, este é um Natal para repensar muita coisa, e prestar mais atenção no que está havendo dentro e fora de nós: indagando, de verdade, em que pessoas estamos nos tornando, que futuro estamos preparando, que país, que ordem, que progresso, que bem-estar, que segurança, que esperanças criamos neste quase fim de 2006.
Ilustração Atômica Studio

A força das palavras

A força das palavras

"Viemos ao mundo para dar nomes às coisas: dessa forma nos tornamos senhores delas ou servos de quem as batizar antes de nós".

Palavras assustam mais do que fatos: às vezes é assim.
Descobri isso quando as pessoas discutiam e lançavam palavras como dardos sobre a mesa de jantar. Nessa época, meus olhos mal alcançavam o tampo da mesa e o mundo dos adultos me parecia fascinante. O meu era demais limitado por horários que tinham de ser obedecidos (por que criança tinha de dormir tão cedo?), regras chatas (por que não correr descalça na chuva, por que não botar os pés em cima do sofá, por quê, por quê, por quê...?), e a escola era um fardo (seria tão mais divertido ficar lendo debaixo das árvores no jardim de casa...).
Mas, em compensação, na escola também se brincava com palavras: lá, como em casa, havia livros, e neles as palavras eram caramelos saborosos ou pedrinhas coloridas que a gente colecionava, olhava contra a luz, revirava no céu da boca... E às vezes cuspia na cara de alguém de propósito, para machucar.
Depois houve um tempo (hoje não mais?) em que palavras eram cortadas por reticências na tela do cinema, enquanto sobre elas se representavam cenas que, como se dizia no tempo dos pudores, fariam corar um frade de pedra.
Palavras ofendem mais do que a realidade – sempre achei isso muito divertido. Palavras servem para criar mal-entendidos que magoam durante anos:
–Você aquela vez disse que eu...
–De jeito nenhum, eu jamais imaginei, nem de longe, dizer uma coisa dessas....
–Mas você disse...
–Nunca! Tenho certeza absoluta!
Vivemos nesses enganos, nesses desencontros, nesse desperdício de felicidade e afeto. No sofrimento desnecessário, quando silenciamos em lugar de esclarecer. "Agora não quero falar nisso", dizemos. Mas a gente devia falar exatamente disso que nos assusta e nos afasta do outro. O silêncio, quando devíamos falar, ou a palavra errada, quando devíamos ter ficado quietos: instauram-se, assim, o drama da convivência e a dificuldade do amor.
Sou dos que optam pela palavra sempre que é possível. Olho no olho, às vezes mão na mão ou mão no ombro: vem cá, vamos conversar? Nem sempre é possível. Mas, em geral, é melhor do que o silêncio crispado e as palavras varridas para baixo do tapete.
Não falo do silêncio bom em que se compartilham ternura e entendimento. Falo do mal de um silêncio ressentido em que se acumulam incompreensão e amargura – o vazio cresce e a mágoa distancia na mesma sala, na mesma cama, na mesma vida. Em parte porque nada foi dito, quando tudo precisaria ser falado, talvez até para que a gente pudesse se afastar com amizade e respeito quando ainda era tempo.
Falar é também a essência da terapia: pronunciando o nome das coisas que nos feriram, ou das que nos assustam mais, de alguma forma adquirimos sobre elas um mínimo controle. O fantasma passa a ter nome e rosto, e começamos a lidar com ele. Há estudos interessantíssimos sobre os nomes atribuídos ao diabo, a enfermidades consideradas incuráveis ou altamente contagiosas: muitas vezes, em lugar das palavras exatas, usamos eufemismos para que o mal a que elas se referem não nos atinja.
A palavra faz parte da nossa essência: com ela, nos acercamos do outro, nos entregamos ou nos negamos, apaziguamos, ferimos e matamos. Com a palavra, seduzimos num texto; com a palavra, liquidamos – negócios, amores. Uma palavra confere o nome ao filho que nasce e ao navio que transportará vidas ou armas.
"Vá", "Venha", Fique", "Eu vou", "Eu não sei", "Eu quero, mas não posso", "Eu não sou capaz", "Sim, eu mereço" – dessa forma, marcamos as nossas escolhas, a derrota diante do nosso medo ou a vitória sobre o nosso susto. Viemos ao mundo para dar nomes às coisas: dessa forma nos tornamos senhores delas ou servos de quem as batizar antes de nós.

Lya Luft

VEJA on-line Ponto de vista: Lya Luft
Edição 1862, 14 de julho de 2004

Canção das Mulheres

Canção das Mulheres
Lya Luft

Que o outro saiba quando estou com medo, e me tome nos braços sem fazer perguntas demais.
Que o outro note quando preciso de silêncio e não vá embora batendo a porta, mas entenda que não o amarei menos porque estou quieta.
Que o outro aceite que me preocupo com ele e não se irrite com minha solicitude, e se ela for excessiva saiba me dizer isso com delicadeza ou bom humor.
Que o outro perceba minha fragilidade e não ria de mim, nem se aproveite disso.
Que se eu faço uma bobagem o outro goste um pouco mais de mim, porque também preciso poder fazer tolices tantas vezes.
Que se estou apenas cansada o outro não pense logo que estou nervosa, ou doente, ou agressiva, nem diga que reclamo demais.
Que o outro sinta quanto me dói a idéia da perda, e ouse ficar comigo um pouco, em lugar de voltar logo à sua vida, não porque lá está a sua verdade mas talvez seu medo ou sua culpa.
Que se começo a chorar sem motivo depois de um dia daqueles, o outro não desconfie logo que é culpa dele, ou que não o amo mais.
Que se estou numa fase ruim o outro seja meu cúmplice, mas sem fazer alarde nem dizendo ''Olha que estou tendo muita paciência com você!".
Que se me entusiasmo por alguma coisa o outro não a diminua, nem me chame de ingênua, nem queira fechar essa porta necessária que se abre para mim, por mais tola que lhe pareça.
Que quando sem querer eu digo uma coisa bem inadequada diante de mais pessoas, o outro não me exponha nem me ridicularize.
Que quando levanto de madrugada e ando pela casa, o outro não venha logo atrás de mim reclamando: "Mas que chateação essa sua mania, volta pra cama!".
Que se eu peço um segundo drinque no restaurante o outro não comente logo: Pôxa, mais um?"
Que se eu eventualmente perco a paciência, perco a graça e perco a compostura, outro ainda assim me ache linda e me admire.
Que o outro, filho, amigo, amante, marido, não me considere sempre disponível, sempre necessariamente compreensiva, mas me aceite quando não estou podendo ser nada disso.
Que, finalmente, o outro entenda que mesmo se às vezes me esforço, não sou, nem devo ser, a mulher-maravilha, mas apenas uma pessoa: vulnerável e forte, incapaz e gloriosa, assustada e audaciosa - uma mulher.

Texto retirado do livro "Pensar é Transgredir".

Canção dos Homens

Canção dos Homens
Lya Luft

Que quando chego do trabalho ela largue por um instante o que estiver fazendo, filho, panela, computador e venha me dar um beijo como os de antigamente.
Que quando nos sentarmos à mesa para jantar ela não desfie a ladainha dos seus dissabores domésticos. E se for uma profissional, que divida comigo o tempo de comentarmos nosso dia.
Que se estou cansado demais para fazer amor, ela não ironize nem diga que ''até que durou muito'' o meu desejo ou potência.
Que quando quero fazer amor com ela não se recuse demasiadas vezes, nem fique impaciente ou rígida, mas cálida como foi anos atrás.
Que não tire nosso bebê dos meus braços dizendo que homem não tem jeito pra isso, ou que não sei segurar a cabecinha dele, mas me ensine docemente se eu não souber.
Que ela nunca se interponha entre mim e as crianças, mas sirva de ponte entre nós quando me distancio ou distraio demais.
Que ela não me humilhe porque estou ficando calvo ou barrigudo, nem comente nossa intimidade com as amigas, como tantas mulheres fazem.
Que quando conto uma piada para ela ou na frente de outros, ela não faça um gesto de enfado dizendo ''Essa você já contou umas mil vezes!".
Que ela consiga perceber quando estou preocupado com trabalho, e seja calmamente carinhosa, sem me pressionar para relatar tudo, nem suspeitar de que já não gosto dela.
Que quando preciso ficar um pouco quieto ela não insista o tempo todo para que eu fale ou escute, como se o silêncio fosse sinal de falta de amor.
Que quando estou com pouco dinheiro ela não me acuse de ter desperdiçado com bobagens em lugar de prover minha família.
Que quando saio para o trabalho de manhã ela se despeça com alegria, sabendo que mesmo de longe eu continuo pensando nela.
Que quando estou trabalhando ela não telefone a toda hora para cobrar alguma coisa que esqueci de fazer ou não tive tempo.
Que não insinue com minha secretária ou colega para descobrir se tenho uma amante.
Que jamais se permita nenhuma alusão, mesmo de brincadeira, seja positiva ou negativa, sobre meu desempenho sexual.
Que com ela eu também possa ter momentos de fraqueza, de ternura, me desarmar, me desnudar de alma, sem medo de ser criticado ou censurado: que ela seja minha parceira, não minha dependente nem meu juiz.
Que cuide um pouco de mim como minha mulher, mas não como se eu fosse uma criança tola e ela a mãe onipotente; que não me transforme em filho.
Que mesmo com o tempo, os trabalhos, os sofrimentos e o peso do cotidiano, ela não perca o jeito terno e divertido que tanto me encantou quando a vi pela primeira vez.
Que eu não sinta que me tornei desinteressante ou banal para ela, como se só os filhos e as vizinhas merecessem sua atenção e a sua alegria.
E que se erro, falho, esqueço, me distancio, me fecho demais, ou machuco consciente ou inconscientemente, ela saiba me chamar de volta com aquela ternura que só nela eu descobri, e desejei que não se perdesse nunca, mas me contagiasse e me tornasse feliz, menos solitário, e muito mais humano.
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